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Acaso e absurdo, 2024-2

 

Que uma Realidade Total infinitamente complexa dê origem a uma natureza humana tão insuficiente pode parecer um absurdo. Mas a verdade é que o acaso gera uma infinita variedade de seres humanos, e portanto nem todos podem ser de boa qualidade, qualquer que seja o critério de avaliação que usemos. Assim não é possível esperar que o Bem alguma vez triunfe sobre o mal.

Pascal disse: “o silêncio eterno dos espaços infinitos apavora-me”. A mim apavora-me mais a infinita diversidade da mente humana, que cobre toda a gama que vai dos sentimentos mais sublimes aos mais abjectos.

Cada pessoa é essencialmente uma personagem conduzida por forças que não controla, tal como uma molécula de água na corrente dum rio. Nestas condições, qualquer pessoa irá sentir, em algum momento da sua vida, que vive num mundo absurdo. O estado miserável da realidade humana actual não é obviamente um resultado de vontades mas sim a consequência inevitável das incapacidades da mente humana.

“Face à História, qualquer homem minimamente consciente das constantes mudanças e da complexidade quase infinita das coisas sente-se pouco a pouco invadido pelos sentimentos do horrível e do absurdo. Nenhum destes sentimentos se altera e em breve, sem que a primeira ou a segunda destas noções enfraqueça, junta-se-lhes uma outra, a de uma vasta impostura, na qual, activos ou passivos, todos participamos.” (Marguerite Yourcenar, in “Peregrino e estrangeiro”)

“A vida é infinitamente mais estranha do que a mente humana pode imaginar.” (Arthur Conan Doyle)

“As coisas parecem-nos absurdas ou más porque delas temos um conhecimento parcial, e somos completamente ignorantes quanto à ordem e à coerência da natureza como um todo.” (Baruch Spinoza) Fomos colocados num mundo que não podemos compreender completamente. O sentimento de absurdo advém desta incapacidade.

O absurdo é o dizermo-nos humanos sem sabermos como construir um paraíso.

O paraíso é o mais belo dos mundos possíveis. Se não houver vida após a morte, só razões estéticas podem levar alguém a praticar o Bem em vez do mal. Mas o estado actual do mundo mostra bem que o sentido estético da maior parte dos seres humanos é muito fraco. Além disso, em face da muito próxima extinção da espécie humana, valerá a pena construir um paraíso? Só um paraíso eterno seria realmente admirável.

“O absurdo é a verdade essencial da vida. As pessoas e a sociedade são bastante absurdas.” (Lorrie Moore, na entrevista publicada no Ípsilon de 01-12-2023)

Se as pessoas tivessem a capacidade de se autocriticar, não seriam tão ridículas e absurdas.

“Se tudo na nossa existência é absurdo, o sofrimento é o que há de mais absurdo na Terra.” (Jean Vercors) Mas ainda mais absurdo do que o sofrimento é o prazer que alguns “humanos” sentem quando infligem sofrimento aos outros. No homem, uma sensibilidade defeituosa domina facilmente uma Razão débil. Uma humanidade autêntica é incompatível com uma inteligência e uma sensibilidade insuficientes.

“Fazer sofrer é a única maneira de nos enganarmos.” (Albert Camus)

Perante uma natureza humana tão absurda, se um crente afirmar que o homem foi criado por Deus, estará a blasfemar.

“Pode ser que haja vida inteligente em qualquer outro pleneta. Neste, positivamente, só há a mais absurda estupidez.” (Millôr Fernandes)

“The fact that an opinion has been widely held is no evidence whatever that it is not utterly absurd; indeed in view of the silliness of the majority of mankind, a widely spread belief is more likely to be foolish than sensible.” (Bertrand Russell)

“Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana, mas não tenho a certeza quanto à infinidade do primeiro.” (Albert Einstein)

“I would like to think that people are capable of rational thought and of living in a rational manner but there has been study after study that demonstrates that that's not likely.” (Guy R. McPherson)

“Há dentro de nós a exigência absoluta de sermos eternos e a certeza de o não sermos. O absurdo é a centelha do contacto destes dois opostos.” (Vergílio Ferreira) Ou seja, o absurdo humano resulta de sermos a união de um Espírito eterno com um corpo material efémero e sujeito ao acaso. Mas a morte só é absurda de um ponto de vista individualista, que eu considero ser um equívoco. O sentido da realidade humana só pode ser encontrado na Humanidade como um todo. De facto, se existir algum sentido, ele está no todo e não em cada uma das partes. E se a Humanidade vier a sucumbir aos problemas por si criados, esse será o derradeiro absurdo.

“A vida é o único bem. Sacrificá-la é uma loucura. (…) Qualquer acto de heroísmo é absurdo e criminoso.” (Roger Martin du Gard) Qualquer assassino ama mais as suas ideias do que a vida.

“A dor que não ajuda ninguém é absurda.” (André Malraux)

“O absurdo, segundo Camus, é o sentimento que experimentamos quando constatamos que os sentidos que atribuímos à nossa vida não existem além de nossa própria consciência, ou seja, os sentidos das coisas não estão nelas mesmas, mas são criados por nós. Perceber isso permite-nos constatar que todo o universo é sem sentido.” (Bruno Carrasco, in “Albert Camus e o absurdismo”, disponível na Internet) Mas as mentes que criam aqueles sentidos são manifestações do Espírito Universal e eterno. Se este Espírito contiver o sentido da vida humana, esta só pode ser absurda em virtude das limitações de inteligência e sensibilidade, e sendo estas devidas ao acaso, o absurdo será uma consequência do acaso. Compreende-se facilmente que o absurdo do mundo resulte do acaso porque este é, por natureza, inexplicável. Mas se o Espírito não contiver o sentido da vida humana, esta será absolutamente absurda, isto é, sem sentido.

“Ninguém faz o mal voluntariamente.” (Sócrates) Isto é, uma pessoa pratica o mal porque a sua inteligência ainda não compreendeu o que é o Bem nem as vantagens de o praticar, ou porque uma sensibilidade defeituosa o leva a praticar actos irracionais.

“Existe apenas um bem, o saber, e apenas um mal, a ignorância.” (Sócrates) Mas há ainda o mal que advém dos defeitos da sensibilidade.

Normalmente o mal surge espontaneamente ao passo que a maior parte do Bem procura remediar algum mal que já foi feito. Mas há males que talvez não seja possível remediar, como a rápida queda da Humanidade para o abismo que está actualmente em curso.

“Quando alguém nasce /Nasce selvagem” (da canção “Nasce Selvagem”da banda Delfins). E permanecerá selvagem se fizer parte de uma das várias tribos, entre as quais reinam a desconfiança e a competição, por vezes violenta. A humanidade é apenas uma ideia imprecisa que a natureza humana não permite assimilar completamente.

Todo o animal tem predadores, porque a vida animal alimenta-se da própria vida. E o homem é o principal predador do homem. Este é o significado do aforismo “o homem é o lobo do homem” (divulgado por Thomas Hobbes).

“Como gostaria de ser uma planta, mesmo que tivesse de velar um excremento!” (Emil Cioran, in “Silogismos da Amargura”)

Ninguém pode prever quando começará a próxima guerra, mas pode garantir-se que ela irá começar algum dia. Alguns são naturalmente bondosos, outros são naturalmente violentos. E haverá sempre assuntos importantes em que a unanimidade não é possível. O absurdo da guerra resulta de não podermos ver todos a mesma Verdade, em virtude das limitações de inteligência e sensibilidade. É também por isso que existem partidos políticos.

A guerra é inevitável porque estão constantemente a aparecer seres humanos que não conseguem libertar-se das suas obsessões violentas.

“Se queres paz, prepara-te para a guerra.” (provérbio latino) A imagem de fraqueza traz a guerra. Só os fortes conseguem afastar os predadores.

Anseio por uma época em que a comunidade internacional seja governada por máquinas verdadeiramente inteligentes. Mas será necessário assegurar que estas máquinas são dotadas de uma moralidade elevada. Esta parece-me ser a única maneira de acabar com a guerra.

“As guerras dizem que ocorrem por nobres razões: a segurança internacional, a dignidade nacional, a democracia, a liberdade, a ordem, o mandato da civilização ou a vontade de Deus. Nenhuma tem a honestidade de confessar: Eu mato para roubar.” (Eduardo Galeano)

“Quando começa uma guerra, a primeira vítima é a verdade.” (Hiram Johnson)

A guerra é um jogo estúpido porque não permite que alguém ganhe. A guerra é a melhor prova da estupidez dos seres humanos.


“Ninguém ganhou a última guerra nem ninguém ganhará a próxima.” (Eleanor Roosevelt)

 

“Certamente têm razão aqueles que definem a guerra como estado primitivo e natural. Enquanto o homem for um animal, viverá por meio de luta e à custa dos outros, temerá e odiará o próximo. A vida, portanto, é guerra.” (Hermann Hesse)

Só o que é feito com amor tem sentido, mas os santos — aqueles que fazem tudo com amor — são muito raros. Só o amor e o humor podem aliviar o sentimento de absurdo.

“Não ser amado é uma simples desventura. A verdadeira desgraça é não saber amar.” (Albert Camus)

“A Humanidade é absurda. É preciso rir disso, se não morremos” (Terry Gilliam)

Quando consideramos o passado da Humanidade, somos forçados a concluir que ela é absolutamente absurda. Esse passado só consegue despertar gargalhadas ou lágrimas.

A lógica do mundo é incompreensível e absurda. Por isso nos sentimos alheios a uma Natureza que não é mãe, nem sequer madrasta, porque não pode satisfazer nenhum dos nossos maiores sonhos, por estarem fora dos limites da matéria. Penso que Leibniz estava a ser ingénuo ao pensar que vivemos no melhor de todos os mundos possíveis (Wikipédia: O melhor de todos os mundos possíveis). 

Num mundo tão influenciado pelo acaso, não surpreende que existam tantos absurdos e aberrações.

Um amigo meu, da minha geração, disse-me recentemente: “nunca pensei chegar a esta idade e ver o mundo na situação desgraçada em que se encontra”.

Cada pessoa tende a pensar que o mundo obedece à sua vontade. Se isto fosse verdade o mundo não evoluiria, porque existe uma enorme diversidade de vontades e estas apontam para caminhos diferentes. O pensamento é livre, mas as leis que comandam a evolução da realidade são inelutáveis. Quantas utopias têm perecido!

“Nada é mais poderoso do que uma ideia que chegou no tempo certo.” (Victor Hugo)

 

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