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Equívocos, 2024-1

A natureza inata de uma pessoa e a sua experiência de vida determinam a presente estrutura do seu sistema nervoso (ver o post 2022-2). Esta estrutura determina o que a pessoa é capaz de fazer e, portanto, o que ela pode querer fazer. Por exemplo, sem vocação musical não é razoável querer ser um grande violinista. A sensibilidade, raiz da maior parte das escolhas, é também determinada por aquela estrutura. Algumas escolhas são determinadas pelo raciocínio, mas neste caso não podemos falar de escolhas livres, porque a lógica impõe certas decisões.

Quando a escolha é racional podemos justificá-la, mas quando ela se baseia na sensibilidade isso não é possível. As pessoas com perturbação obsessivo-compulsiva podem detestar as suas obsessões mas não conseguem libertar-se delas. As obras de alguns escritores revelam obsessões e ansiedades, como no caso de Emil Cioran, mas não é costume associar estas obsessões a uma doença mental. Mas em qualquer caso a obsessão é uma consequência inevitável da estrutura do sistema nervoso.

“All extremes of feeling are allied with madness.” (Virginia Woolf)

Portanto, as leis naturais e o acaso determinam as coisas que uma pessoa pode querer fazer nas circunstâncias actuais. Ser livre é simplesmente poder realizar qualquer uma dessas coisas. Obviamente, quem está numa prisão não é livre de ir ao cinema.

Podemos desejar o que quisermos mas só o conseguiremos se as leis naturais o permitirem. O método científico é o uso que fazemos das leis naturais.

“A man can surely do what he wills to do, but cannot determine what he wills.” (Arthur Schopenhauer) Eu prefiro dizer: um homem talvez possa fazer o que deseja fazer (se as leis naturais o permitirem), mas não pode escolher o que irá desejar.

“That's what desire is. The need for what we can't have. The need for what's readily available is called greed.” (Mike Carey)

“Everything is determined, the beginning as well as the end, by forces over which we have no control. It is determined for the insect as well as the star. Human beings, vegetables, or cosmic dust, we all dance to a mysterious tune, intoned in the distance by an invisible piper.” (Albert Einstein)

Só a Consciência Cósmica é livre e a incerteza quântica é talvez a expressão desta liberdade.

As polémicas sobre o livre-arbítrio, que duram há vários séculos, baseiam-se muitas vezes num conceito vago e incorrecto de livre-arbítrio que coloca dentro da pessoa uma entidade mítica capaz de decidir sem restrições. Por outro lado, é provável que algumas capacidades dos seres humanos não possam ainda ser compreendidas completamente, por não se conhecerem todas as leis que regulam a vida (ver o post 2023-18).

Na tragicomédia que a vida humana é, todos os homens obedecem automaticamente às leis que comandam a transformação da realidade, ainda que alguns pareçam influenciar mais esta transformação. Nas mesmas circunstâncias, as pessoas só não têm comportamentos idênticos porque os seus cérebros são diferentes. A diversidade e a mudança são características fundamentais da vida e o acaso promove-as constantemente.

Cada pessoa tem o destino que as leis naturais e o acaso lhe impõem. Como escrevi no post 2022-2, não vejo nenhuma razão para que estas leis não expliquem completamente a evolução de qualquer sistema material. Em virtude da neuroplasticidade, a estrutura do sistema nervoso está constantemente a ser alterada pelos dados que recebemos através dos sentidos. Ora, é óbvio que esta estrutura determina o que a pessoa sente, pensa e faz em cada instante, de acordo com as leis naturais.

O sentimento de que comandamos a nossa vida é uma ilusão. Esta ilusão resulta de assistirmos à evolução do mundo de que fazemos parte.

A realidade nunca é o que parece, porque vemos sempre o mundo através de filtros mentais (ver o post 2023-29). Pior ainda, estes filtros não são os mesmos para todas as pessoas, e qualquer uma delas tem tendência para pensar que está mais próxima da Verdade do que as outras. Todas as mentes são diferentes e cada uma delas responde à sua maneira aos dados que os sentidos lhe fornecem.

A realidade é demasiado estranha e complexa para ser um produto das vontades dos seres humanos. Quase todos os dias acontecem coisas que me parecem inimagináveis e que no futuro serão consideradas absurdas. Se a vida humana fosse essencialmente determinada pelas mentes humanas, porque não haveria ela de ser mais bela e justa?

A imaginação, a vontade e a responsabilidade são conceitos que usamos para descrever a maneira como as leis naturais actuam através das nossas mentes. Mas nós não sabemos definir rigorosamente estes conceitos, porque não temos consciência do que se passa dentro dos nossos cérebros. Assim, a maneira como descrevemos a evolução da realidade é em larga medida uma narrativa equivocada, porque não tem em conta a influência do acaso nem os processos mentais inconscientes que estão na base do comportamento humano.

Usa-se frequentemente a metáfora segundo a qual, numa democracia, as políticas são determinadas pela vontade do povo. Mas o que é a vontade do povo?

Normalmente, os homens isolados preferem a paz à guerra. Por isso, pensar que a guerra é determinada pelas vontades individuais parece-me uma ilusão. A guerra e outros fenómenos colectivos, como o populismo, são devidos à acção de leis naturais que actuam sobre o conjunto das mentes de cada povo e que, em determinadas circunstâncias, conduzem à prática de actos violentos. É claro que na origem das guerras estão sempre limitações de inteligência e sensibilidade. Assim, querer evitar a guerra e outros grandes erros da Humanidade sem um maior investimento na educação é tão estulto como esperar que as mesmas leis actuando sobre as mesmas causas conduzam a efeitos diferentes.

Em nenhum de nós é possível identificar um «eu» que possa ser responsabilizado pelas suas decisões. A alma que nos conduz não está dentro de nós mas sim no Espírito Universal que contém todas as leis naturais. Quando leio um grande escritor parece-me sempre que alguém está a usar a sensibilidade dele para contar uma história.

“Não é verdade que só o autor se apaixona pela obra. Também a obra se apaixona pelo seu autor. Na verdade é mesmo por isso que o autor se apaixona por ela.” (Ana Hatherly) Como outros têm dito, “não fui eu que escolhi a obra, foi ela que me escolheu a mim”.

Eu não penso de uma determinada maneira porque quero pensar assim, mas porque certas leis me levam a pensar desse modo, em consequência da estrutura do meu cérebro e das circunstâncias do momento. Ora, este facto não me impede de pensar que Putin e Netanyahu são dois carniceiros execráveis, mas não os considero responsáveis pelas atrocidades que cometem.

“It is problematic to imagine yourself in the shoes of a criminal and conclude, “Well, I wouldn’t have done that”— because if you weren’t exposed to in utero cocaine, lead poisoning, or physical abuse, and he was, then you don’t fit in his shoes. Even if you would like to imagine what it’s like to be him, you won’t be very good at it.” (David Eagleman, in Incognito)

No artigo “Neuroscience: My brain made me do it”, de Adam Kepecs (publicado na revista Nature e disponível na Internet) pode ler-se o seguinte: “[David] Eagleman argues that as we gain a better understanding of the biology of decision-making, we will be forced to conclude that all crime is caused by faulty brain circuits arising from genetic and environmental interactions over which the perpetrator has no control.”

O mundo em que vivemos não é certamente aquele que gostaríamos de ter construído. Mas, não sendo capazes de conceber um mundo melhor, não conseguimos realizá-lo. E se a educação não conseguir melhorar os cérebros da maioria dos seres humanos, então não será possível melhorar o mundo.

Como escrevi no post 2023-10, a liberdade é o direito e o dever de praticar o Bem. Não conheço melhor definição de liberdade, mas mesmo esta definição não é definitiva porque o que é Bem para uns pode não o ser para os outros. Esta liberdade só se consegue através da educação, que é o único meio de corrigir a estrutura do cérebro. Mas infelizmente haverá sempre regimes políticos que precisam da estupidez dos povos para subsistir. O mundo está num estado miserável porque não há educadores suficientes.

“Se os governantes não construírem escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construir presídios.” (Darcy Ribeiro)

“O medo governa-nos. Essa é uma das ferramentas de que se valem os poderosos, a outra é a ignorância.” (Eduardo Galeano)

“Somos o que fazemos, mas somos, principalmente, o que fazemos para mudar o que somos.” (Eduardo Galeano)

No jornal i de 12-12-2023, a propósito do livro “As botas de Mussolini”, de Gonçalo M. Tavares, João Oliveira Duarte afirma que o passado da Humanidade é uma catástrofe permanente, e que isto torna impossível qualquer história. De facto, quando os historiadores tentam explicar os acontecimentos passados, supondo que estes acontecimentos resultam das vontades de alguns homens, estão condenados a falhar. Além disso a explicação é sempre afectada pelas simpatias e antipatias de quem as dá. Putin dá uma explicação da invasão da Ucrânia (não sei se ele acredita na sua explicação absurda) e a maioria dos líderes ocidentais dá outra. A verdade é que a evolução de mundo é essencialmente inexplicável, porque não conhecemos todas as leis que a regem. Devido a este desconhecimento e à influência do acaso, a evolução do mundo é largamente imprevisível.

O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, afirmou recentemente que 136 funcionários da organização foram mortos na Faixa de Gaza desde o início do conflito Israel-Hamas, “algo que nunca foi visto antes na história da ONU”. Foi também noticiado que morreram já 61 jornalistas naquele conflito. Daqui a alguns anos, quando recordarmos a guerra Israel-Hamas, iremos perguntar: “Como foi aquilo possível?”

Desde 2008, nos conflitos israelo-palestinianos foram mortos cerca de 18600 palestinianos e cerca de 1500 israelitas (ver na Internet o artigo “Charts show a stark difference in the human cost of Israeli-Palestinian conflicts over the years” do CNBC). Em face destes números, o conceito de dignidade humana parece ser mais um equívoco.

 

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