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Mais sobre o livre-arbítrio, 2024-10

 

Sendo o cérebro um sistema material, o seu funcionamento terá de ser governado pelas leis naturais (ver o post 2024-7). A opinião contrária é anticientífica.

Para haver decisões parcialmente independentes dos estímulos exteriores (exigência do livre-arbítrio) teria de haver, no interior do cérebro, uma componente imaterial, que teria também de existir no cérebro de outros primatas (pelo menos). Ora, não me parece que isto possa ser verdade. A maior complexidade do cérebro humano permite comportamentos mais sofisticados, mas estes poderão não exigir uma estrutura cerebral radicalmente diferente da de um chimpanzé.

As nossas decisões ou são de tipo instintivo ou são baseadas em características da mente, como a sensibilidade e a Razão, que a nossa vontade não comanda. Em particular, a Razão não pode causar o livre-arbítrio, porque a lógica impõe-nos determinados caminhos. Na reflexão, a pessoa usa a lógica para, com base nos conhecimentos que tem na memória, deduzir um caminho de acção. Este procedimento é usado não só na vida do dia a dia mas também na construção da ciência. Nestas condições, não vejo qual possa ser a origem do livre-arbítrio.

“Quem acredita no livre-arbítrio nunca amou e nunca odiou.” (Marie von Ebner-Eschenbach)

O livre-arbítrio, a responsabilidade e a justiça não são conceitos que possam ser definidos rigorosamente. Eles fazem parte de narrativas construídas pela mente para descrever a realidade humana, mas estas narrativas são ilusórias, porque não exprimem com rigor o que realmente acontece no interior do cérebro. Aceitamos facilmente que o comportamento de um chimpanzé, na sua relação com o meio ambiente, seja completamente governado pelas leis naturais, que determinam os instintos do animal. Mas, quando analisamos o comportamento humano, temos alguma dificuldade em aceitar essa inevitabilidade imposta pelas leis naturais, porque a consciência cria em nós a ilusão de estar fora do mundo e de o comandar. No entanto, repito, eu não encontro razões para que os processos naturais que determinam o comportamento de um chimpanzé sejam radicalmente diferentes daqueles que ocorrem num ser humano. Nós experienciamos a nossa vida interior mas não podemos experienciar a de um chimpanzé e por isso não podemos dizer nada sobre a maneira como ele vê o mundo.

Acredito que estamos muito longe de conhecer todas as leis que regulam a vida. Quando as conhecermos melhor, talvez possamos definir com algum rigor algo a que possamos chamar livre-arbítrio. Neste momento não me parece que isto seja possível.

Existe aqui outra dificuldade: a pretensão de uma mente se conhecer exaustivamente a si mesma é provavelmente uma impossibilidade lógica, como a de alguém que pretenda cortar o cabo de uma serra com a mesma serra. Saber como uma pessoa toma as suas decisões é certamente uma parcela dessa pretensão. Não sendo possível deslindar com absoluto rigor estas questões, cada um ficará com a sua crença. E a minha é que um sistema material, qualquer que seja a sua estrutura, obedece inevitavelmente às leis naturais. E só pode haver resposta da mente a um estímulo exterior depois de este ter afectado a estrutura física do cérebro através do fenómeno designado por neuroplasticidade, de modo que as leis naturais possam actuar. Quem acredita no livre-arbítrio pensa que a origem das decisões do homem está no interior do seu corpo. Para mim esta origem é a sede das leis naturais (que tenho designado por Espírito Universal), e é portanto exterior a todos os sistemas materiais.

O Universo só não é puramente determinista devido ao efeito das incertezas quânticas, que é reforçado pela existência de fenómenos caóticos. Mas não me parece que este indeterminismo quântico possa justificar algo a que possamos chamar livre-arbítrio.

“If determinism is true, the future is set—and this includes all our future states of mind and our subsequent behavior. And to the extent that the law of cause and effect is subject to indeterminism—quantum or otherwise—we can take no credit for what happens. There is no combination of these truths that seems compatible with the popular notion of free will.” (Sam Harris, in “Free Will”)

“Our wills are simply not of own making. Thoughts and intentions emerge from background causes of which we are unaware and over which we exert no conscious control. We do not have the freedom we think we have.” (Ibidem)

Isto é, a ideia de que determinamos o nosso caminho na vida é ilusória. Nós limitamo-nos a reagir às circunstâncias de acordo com leis de que não temos consciência. Além disso, ninguém escolhe o seu modo de ser. Se assim não fosse, não haveria tantos imbecis. E os pais não podem escolher a natureza dos filhos, como gostariam.

Para mim só existe uma maneira de dar sentido à palavra liberdade que é dizer que ela é o direito e o dever de praticar o Bem (ver o post 2023-10). Ora, o estado actual do mundo mostra bem que o homem é incapaz de pôr em prática as ideias de paz e justiça e que portanto ele não é livre. A História mostra que a vida de qualquer povo sempre foi uma alternância de períodos de relativa acalmia com outros de convulsão social e guerra. E será sempre assim, precisamente porque a evolução do mundo escapa ao controlo do homem. As crises a que a Humanidade está permanentemente sujeita costumam revelar o melhor e o pior dos seres humanos, sem que as suas qualidades sejam escolhidas por eles.

Sugiro a leitura do seguinte artigo (disponível na Internet): “O problema do livre-arbítrio”, de Tiago Carneiro.

Os grandes problemas da Humanidade resultam das enormes diferenças entre os seres humanos, do baixo nível médio da inteligência e de uma sensibilidade deficiente. A inexistência de um plano e uma influência tão grande do acaso implicam que a realidade humana continuará a ser o caos deprimente que tem sido até agora, onde nenhuma ideia de Bem conseguirá alguma vez impor-se. O objectivo da vida é simplesmente viver, aceitando aquilo que as circunstâncias nos oferecem e as leis naturais nos impõem. Não se vislumbra qualquer outro propósito. E isto é tão verdadeiro para o elefante como para o homem.

Sendo o comportamento humano total e automaticamente determinado pelas leis naturais, só poderíamos concluir que a vida humana é mais importante do que a dos elefantes se pudéssemos provar que as leis naturais incorporam intenções particulares relativamente à vida humana. Ora isto não pode ser provado, porque o Espírito Universal é incognoscível.

Se considerarmos que cada indivíduo é uma parte inseparável do conjunto da vida terrestre, a inexistência do livre-arbítrio é fácil de compreender. A Humanidade é como uma orquestra dirigida por um maestro invisível cujas ordens me parecem frequentemente absurdas.

“Great bodies of people are never responsible for what they do. They are driven by instincts which are not within their control.” (Virginia Woolf)

Segundo Albert Camus, o problema mais sério da filosofia é o suicídio (ver o post 2023-26). Eu penso que o problema mais importante da filosofia é o livre-arbítrio porque é necessário saber se o suicídio nos é imposto pelas leis naturais ou é escolhido por nós. Mas o livre-arbítrio e o suicídio estão relacionados: sendo o mundo um lugar tão hostil, a baixa taxa de suicídios é uma prova de que o homem não é livre.

Se Deus tivesse dado livre-arbítrio aos seres humanos, estes poderiam mudar significativamente o rumo da criação.

 

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