No Ípsilon de 02-05-2025 foi publicada uma entrevista intitulada “Gabor Maté, o médico do mal-estar dos nossos dias”. Este médico é perito em temas como o stress, as dependências, o trauma, o desenvolvimento infantil e o défice de atenção.
Nos seus livros Gabor fala do corpo e da mente, que para ele são inseparáveis, mas também do modo de vida ocidental, que nos põe doentes. Ele é um médico, mas também um denunciante da forma como vivemos. Um desses livros, publicado originalmente em 2008, chegou recentemente a Portugal: No Reino dos Fantasmas Famintos, que é dedicado aos problemas da toxicodependência.
“No livro que se seguiu, O Mito do Normal (2022), ele interpreta várias epidemias no Ocidente (como a de obesidade ou de doenças mentais) como, em boa medida, manifestações de uma cultura “doente”, que negligencia que corpo e mente são indissociáveis, que varre para debaixo do tapete os traumas e o stress que carregamos nesse corpo-mente.” (Trauma é a palavra grega para “ferida”.)
Em O Mito do Normal ele escreve: “As feridas psíquicas que sofremos são-nos frequentemente infligidas antes de o nosso cérebro ser capaz de formular qualquer tipo de narrativa verbal. Em segundo lugar, mesmo depois de nos tornarmos dotados de linguagem, algumas feridas são impressas em regiões do nosso sistema nervoso que não têm nada que ver com linguagem ou conceitos; isto inclui áreas do cérebro, claro, mas também o resto do corpo.”
Na entrevista Gabor afirma: “Muitas pessoas disseram-me que o livro No Reino dos Fantasmas Famintos lhes salvou a vida. Houve até pais cujos filhos morreram de overdose que vieram ter comigo para me agradecer. E isso também me surpreendeu porque digo no livro que os traumas de infância estão na base da toxicodependência. Esses pais agradecem-me porque compreendem que não os estou a culpar: [o trauma] é multigeracional.”
“O cérebro é verdadeiramente programado ou influenciado no seu desenvolvimento pelas experiências emocionais das pessoas — até no útero. Não invento estas coisas. Para mim, nem sequer é controverso.”
“As dependências podem ser de drogas, mas também de sexo, jogo, alimentação, compras, trabalho, pornografia, bulimia ou automutilação. […] É muito importante que as pessoas percebam que os toxicodependentes não são assim tão diferentes. Apenas sofreram mais, só isso.”
“A dependência não é o problema principal, o problema principal é o sofrimento e a dor emocionais, a falta de tranquilidade e paz, o isolamento, a perda de vitalidade. É esse o vazio de que estou a falar. Ele vem primeiro e as dependências vêm depois. E isso remonta sempre à infância.”
“Quando as necessidades de amor, aceitação e pertença são satisfeitas, as pessoas não precisam de se viciar. Nos Estados Unidos, morrem de overdose o dobro das pessoas que morreram nas guerras do Vietname, do Afeganistão e do Iraque juntas, todos os anos. O dobro! […] Esta sociedade diz-nos que o nosso significado, o nosso propósito e o nosso valor dependem da nossa contribuição económica ou das nossas posses.”
“Se olharmos para as culturas indígenas, percebemos que a forma como evoluímos ao longo de centenas de milhares de anos prevê um sentimento de pertença, de comunidade, de carinho, de ligação. Já a sociedade ocidental diz que os seres humanos são individualistas, egoístas, agressivos e interessados em bens materiais. Numa cultura assim, as necessidades das pessoas não são satisfeitas e há um vazio profundo e real, que vem do sentimento de falta de pertença, da perda de ligação.”
“As crianças deviam estar com os pais durante anos e anos e anos. [Em sociedades antigas] ficavam com os pais até à adolescência — não apenas com os pais, mas também com a tribo ou o clã. Hoje em dia, os pais têm de abandonar os filhos para ir trabalhar, deixando-os com estranhos. Há uma sensação geral de isolamento, solidão e desconexão, e as crianças não têm o ambiente propício para um desenvolvimento saudável.”
“Há indústrias inteiras que se baseiam em dizer-nos que não somos suficientemente bons ou felizes a menos que compremos alguma coisa. Continuam a fomentar este vazio em nós para poderem vender os seus produtos.”
“O capitalismo olha para o corpo como uma unidade de produção ou como uma unidade de consumo: está interessado em nós enquanto estivermos a produzir ou a consumir.”
Para explicar o objectivo do seu livro O Mito do Normal, Gabor Maté afirmou:
“Há certos limites fisiológicos que são normais. Se a sua tensão arterial estiver num intervalo normal, está saudável. “Normal” significa saudável e natural, mas tem outro significado, que é o que quer que seja que costumamos fazer. Numa determinada altura, era normal bater nas crianças — e em muitos países ainda é assim, lá é normal porque muita gente o faz. Mas será que é saudável e natural? Não. É traumatizante para a criança, em todos os casos. É normal nas sociedades ocidentais deixar os bebés chorar e não pegar neles. É normal porque toda a gente o faz. É saudável e natural? Pelo contrário. É normal nas sociedades ocidentais que se diga às pessoas que os seres humanos são egoístas e agressivos. Isso é saudável e natural? Não, não é. É normal ter de fazer um trabalho de que não se gosta? É alienante. É normal no sentido em que se espera que as pessoas o façam. É saudável e natural? Não, é mau para a saúde. […] Faz parte da “normalidade” do mundo moderno o facto de as crianças estarem desligadas dos adultos. Para o desenvolvimento infantil, é um desastre.”
“Trump foi uma criança muito traumatizada. Uma vez, ele disse que o mundo é um lugar horrível, onde todos estão contra nós, salve-se quem puder; os teus amigos querem a tua casa, a tua riqueza, a tua mulher. Bem, se é nisso em que acreditamos, quem é que temos de ser? Temos de ser grandiosos, agressivos, manipuladores e egoístas só para nos protegermos. Esta foi a defesa [de Trump]. Nesta sociedade louca, essas pessoas [Donald Trump, Viktor Orbán, Elon Musk…] são recompensadas com sucesso. E as pessoas pensam que eles são fortes e que, por isso, são bons líderes. Mas não são fortes, são apenas agressivos.”
“A história funciona por ciclos. Penso que estamos a passar por um desses ciclos. O sistema está em dissolução, está em apuros, é cada vez menos capaz de satisfazer as necessidades das pessoas, e, por isso, elas estão desesperadas por algum tipo de solução, por alguém forte. Projectam as suas necessidades nesses líderes, que são viciados em poder.”
“Os judeus, o meu povo, sofreram terrivelmente em vários momentos da História, sobretudo na Europa dos anos 30 e 40. O que é que eles estão a fazer agora? A assassinar os palestinianos! Assassinam-nos! Crianças! É a pior coisa que já vi em toda a minha vida.” Recordando a sua estadia na Palestina em 1992, Gabor disse: “Chorei todos os dias. Também estive lá em 2023, seis meses antes do 7 de Outubro, na Cisjordânia, para trabalhar com mulheres que tinham sido torturadas em prisões israelitas.”
“As pessoas no Ocidente não fazem ideia da crueldade, da opressão, da escuridão, da agressão e da brutalidade da ocupação israelita. Estou a falar de antes do 7 de Outubro. Já dura há décadas e piora todos os anos. É inacreditável! É a pior situação em todo o mundo — há muitas situações más no mundo, de Myanmar [Birmânia] ao Sudão, mas esta está a acontecer com o apoio e a cumplicidade do mundo “civilizado” e “democrático”. E as mentiras, a hipocrisia e a incapacidade de dizer a verdade ou de informar sobre o que se está a passar.”
“Penso que as pessoas têm capacidade para se curar. Penso que as sociedades têm capacidade para se curar. Envolve muito trabalho, muito desânimo, muito sofrimento, mas acho que, no final, é possível. É isso que me faz continuar. Não é uma fé religiosa. É apenas uma espécie de confiança… É uma fé não religiosa.”
A verdadeira crença em Deus determina uma necessidade permanente de partilhar as boas emoções. Algumas pessoas são crentes por natureza. “Muito do que foi chamado religião carrega uma atitude inconsciente de hostilidade em relação à vida. A verdadeira religião deve ensinar que a vida está cheia de alegrias agradáveis aos olhos de Deus, que o conhecimento sem acção é vazio. Todos os homens devem ver que o ensino da religião por regras e rotina é em grande parte uma farsa. O ensino adequado é reconhecido com facilidade. Pode conhecê-lo sem falhar porque desperta dentro de si aquela sensação que lhe diz que isto é algo que sempre soube.” (Frank Herbert) “Quando a religião e a política viajam na mesma carroça, os condutores acreditam que podem afastar tudo do caminho.” (Frank Herbert) Veja-se o regime teocrático do Irão. Actualmente vemos governantes cometer as piores atrocidades, e ao mesmo tempo a apelar à religiosidade do povo e a invocar Deus com frequência. Estes safados e hipócr...
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